domingo, 5 de janeiro de 2014

Epidemia de crack, o flagelo nosso de cada ano

 / Foto: Hélia Scheppa/JC Imagem

Foto: Hélia Scheppa/JC Imagem


Do JC
No primeiro domingo do ano, o Jornal do Comercio conta a história de dois homens, amigos de rua, parceiros de ocasião, unidos pela desgraça do crack. Viciados na pedra, eles perderam o passado e, no fundo do poço, querem fazer de 2014 um ano de transformação, para resgatar o futuro que lhes foi roubado. As trajetórias de Francisco, 37 anos, e Paulo (nomes fictícios), 30, distintas na geografia e em quase tudo, se cruzaram na dependência e na decadência. Os moradores de rua são símbolos do poder de destruição de uma droga onipresente no Recife, que arrasa famílias, espalha medo e cria exércitos de marginalizados nas ruas da capital.
Francisco nasceu no Rio de Janeiro. Filho de pai tenente da Marinha do Brasil, teve educação rigorosa e uma infância sem sobressaltos financeiros. Mas a vida em Vigário Geral, bairro fincado na Zona Norte carioca, logo o levou a um caminho traiçoeiro. O adolescente, então com 15 anos, entrou para o Comando Vermelho (CV), uma das maiores organizações criminosas brasileiras. Ajudava na engrenagem do narcotráfico com pequenos serviços e se enredou no crime. Viu quatro policiais militares serem mortos em 28 de agosto de 1993 na Praça Catolé do Rocha. No dia seguinte, o troco: 21 moradores executados por PMs encapuzados, no episódio que ficou conhecido como a Chacina de Vigário Geral.
A violência assustou o menino. Francisco pediu demissão do CV e saiu fugido para o Recife. Decidiu se afastar da criminalidade e recomeçou. Ajeitou-se na vida, arrumou trabalho como coletor de lixo, casou-se, teve três filhos. “Só andava na beca”, gaba-se.
A vida seguia nos trilhos até que a curiosidade desviou a rota. Um amigo ofereceu e Francisco fumou uma pedra de crack. Nunca mais parou. Foi demitido e, sem dinheiro, começou a furtar dentro da própria casa. Um dia, sumiu a TV. No outro, o sofá. Em seguida, o fogão, a geladeira, o aparelho de som, os R$ 7 mil juntados com suor na poupança. O casamento ruiu. “Minha vida acabou depois disso. Tinha casa, emprego, mulher, filhos. Perdi tudo. Não imaginei que viciasse tão rápido. Minha ex-mulher não deixa eu visitar meus filhos. E ela está certa”, desabafa.
Paulo jamais teve chance na vida. Nasceu encurralado pela exclusão. Não conheceu o pai e apanhava da mãe, que nunca se preocupou com ele. Fugiu de casa quando tinha 8 anos e decidiu morar na rua. Foi sob o relento que conheceu a fome, o mundo do crime e o labirinto do crack, de onde não saiu até hoje.
“Isso não traz nada de bom a ninguém. É só destruição e aperreio. Passo três, quatro noites sem dormir e até uma semana sem comer”, lamenta. Paulo foi preso quatro vezes. Praticava furtos para sustentar o vício. “Tenho orgulho de dizer que nunca fiz mal a ninguém. Sou bandido não. Assumo que furtava, arrombava loja, mas jamais apontei arma para alguém”, revela.
Paulo conheceu Francisco na rua. Dividem pedras de crack, algumas conversas e o teto do Viaduto João de Barros, na Avenida Agamenon Magalhães, no Espinheiro, Zona Norte da capital. Partilham o preconceito de cada dia, revelado sem disfarce pelo vaivém de pessoas ali. “Todo mundo tem medo da gente. Me sinto envergonhado, triste, humilhado. Dá vontade de falar, de dizer para as pessoas que nós não somos monstros, que elas não precisam temer. Alguns cortam caminho, outros dão meia volta, as mulheres seguram a bolsa mais forte. Dá para notar”, conta Paulo. “Isso machuca. O coração chega fica pequeno”, complementa Francisco.
Um e outro já tentaram parar algumas vezes. Procuraram o Programa Atitude, da Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos de Pernambuco, mas reclamam do formato do Atitude Acolhimento e Apoio, casa na qual o usuário de crack passa apenas o dia. “Não adianta de nada. É à noite que tudo acontece. Você passa, o cara oferece, o vício pede. Aí a gente fica o dia limpo e, quando anoitece, sai de lá e consome”, diz Francisco.
Na rua não teve festa de réveillon. Francisco e Paulo ainda não acharam motivos para brindar. Esperam, no entanto, a ampliação da rede de assistência aos viciados na droga para que possam fazer de 2014 o ano da volta por cima. “Queria que a gente se internasse para sair dessa. E aí arrumar um trabalho e voltar a ter dignidade, para que as pessoas possam olhar a gente no olho, sem medo”, pede Paulo.
À espera deste dia, Francisco, mesmo sem ter um teto, arrumou um jeito de guardar todos os documentos: enterrou tudo em algum ponto do Recife que só ele sabe onde fica. Quer ver chegar o momento em que vai cavar a terra para resgatar seu tesouro secreto. “Tenho tudo guardadinho para quando arrumar um emprego.”
A boa notícia chegou há dois meses: o Plano Municipal de Atenção Integrada ao Crack e Outras Drogas, lançado em novembro e cujos resultados já devem começar a ser notados neste ano. Até o final do primeiro semestre, a Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do Recife promete implementar o Programa Atitude Municipal e criar 130 vagas de internamento.
O programa representa investimento de R$ 52 milhões e consiste na execução, até 2016, de 60 ações, entre as quais a implantação de dois núcleos centrais de assistência aos usuários, criação de mais 10 Centros de Referência da Assistência Social (Cras) e ampliação de 10 para 23 do número de casas de acolhimento. “Já estamos com 20 ações em fase de finalização”, afirma o gerente de Política Municipal sobre Drogas, Antônio de Pádua.
A prefeitura vai realizar um diagnóstico para saber o número de usuários de crack na capital pernambucana, além de instituir um sistema informatizado de acompanhamento de fluxo.

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